Seguros - 07.06.19

Em decisão que altera o entendimento mantido, desde então, em que a embriaguez retira da seguradora o dever de indenizar, o Min. Villas Boas Cueva, em julgamento sem unanimidade, concluiu que, embora exclua o segurado do direito de indenização, a embriaguez do segurado não elide o dever de indenizar da seguradora frente ao terceiro, vitima no acidente, garantindo à seguradora o direito de regresso.

Tal entendimento está na contramão da responsabilidade jurídica das decisões e seu caráter socioeducativo, eis que desobriga o segurado a indenizar o terceiro, repassando à seguradora este dever. E, ainda, ofende à mutua da carteira de automóveis, uma vez que, se o segurado não possuir condições econômicas de reembolsar a seguradora, todos os demais segurados participantes desta carteira acabarão sendo prejudicados pela má condição financeira do segurado.

Afora este ponto, igualmente merece destaque a questão de que, se ao terceiro aplicam-se todas as regras aplicáveis ao segurado, como afirmar ser indenizável ao terceiro sinistro negado ao segurado?

Se por embriaguez do contratante a cobertura acabaria sempre garantida ao terceiro, como ficariam as outras clausulas de exclusão? Seriam igualmente ignoradas e a cobertura garantida à vítima?

Por outra face, a questão da função social do seguro encontra reflexo na mutua que o forma de maneira muito mais legitima do que no beneficiário isolado receptor da indenização. A função social é muito mais robusta quando reforça e rechaça a cobertura ao motorista embriagado do que ao dar cobertura a sinistro não indene. Função social é princípio largo, cujo objetivo é fortalecer a cidadania e não privilegiar o ato contaminado pelo incorreto.

Nesta toada, acreditamos que o bom senso há de prevalecer e a decisão há de ser reformada.

 


Decisão do STJ destaca a proteção às vítimas de acidente de carro (06/06/2019)

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.738.247/SC, trouxe uma decisão, pode-se dizer, inédita na corte. Segundo a decisão, nos seguros de responsabilidade civil, devem prevalecer os interesses da vítima, terceira na relação securitária, afastando, em relação a esta, a exclusão de cobertura pela embriaguez do segurado.

Em síntese, entendeu a corte que é devida a indenização ao terceiro, vítima de acidente automobilístico decorrente do estado de embriaguez do segurado, sem prejuízo do direito de regresso da seguradora em face do segurado.

O entendimento que o STJ vinha tendo, até o momento, era no sentido de que, se comprovado o nexo de causalidade (efeito do álcool e acidente), a indenização do seguro de responsabilidade civil não seria devida (REsp 1.441.620/ES).

Citando esse precedente, o ministro Villas Bôas Cueva, relator do caso, destacou que “o tema merece nova reflexão, tendo em vista que nesta espécie securitária não se visa apenas proteger o interesse econômico do segurado relacionado com seu patrimônio, mas, em igual medida, também se garante o interesse dos terceiros prejudicados à indenização, ganhando relevo a função social desse contrato”.

Conclui o relator que “o seguro de responsabilidade civil se transmudou após a edição do Código Civil de 2002, de forma que deixou de ostentar apenas uma obrigação de reembolso de indenizações do segurado para abrigar também uma obrigação de garantia da vítima, prestigiando, assim, a sua função social”.

Já a ministra Nancy Andrighi, que também participou do julgamento, discordou dos demais ministros e exarou seu voto vencido, destacando que a sua visão acerca da função social do contrato é justamente no sentido de considerar lícita a exclusão de cobertura, por estar de acordo com o “princípio da boa-fé e do absenteísmo e a obrigatoriedade do segurado cumprir seus deveres sociais”.

Argumenta, ainda, que a seguradora não pode avalizar uma prática socialmente nociva e definida como infração e crime de trânsito, pois estimularia a assunção de riscos imoderados, causando desequilíbrio ao mutualismo presente no contrato de seguro.

Por outro lado, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que acompanhou o voto vencedor, argumentou que não há “nenhum benefício ao segurado que causou dano por ingestão de álcool, mas efetiva proteção ao terceiro, vítima inocente do sinistro gerado pela embriaguez ao volante do segurado”.

Isto porque, asseverou o ministro, uma vez paga a indenização à vítima, poderá a seguradora “exercer o seu direito de regresso contra o segurado” e que “o dano provocado ao veículo segurado perde a garantia do contrato de seguro”.

Sanseverino conclui que a interpretação do artigo 787 do Código Civil *[1] deve ser no sentido de proteção dos terceiros que “foram vítimas inocentes de um acidente de trânsito e que em nada contribuíram para a sua ocorrência ou para o agravamento do risco”, cumprindo assim, a função social do seguro de responsabilidade civil.

Portanto, com arrimo no artigo 787 do Código Civil e na função social do contrato, a decisão entendeu haver prevalência dos interesses das vítimas, afastando a oponibilidade da embriaguez em relação a elas, mas resguardando o direito da seguradora de se voltar contra o segurado.

Esse entendimento não é estranho ao direito comparado. A Lei de Seguros Espanhola (artigo 76 da Lei 50/1980 *[2]) é até mais rigorosa na proteção dos interesses das vítimas.

Lá é permitida a ação direta da vítima contra a seguradora e a vítima é imune às defesas que a seguradora poderia ter em relação ao segurado, ressalvado o direito de regresso da seguradora contra o segurado, na hipótese de este ter agido de forma dolosa na causação do dano ao terceiro.

Portanto, o terceiro prejudicado tem direito próprio e independente contra a seguradora, e esta não pode opor contra ele eventual embriaguez do segurado.

Já outros países como a França [3] e Canadá [4], por exemplo, asseguram os interesses das vítimas, admitindo a ação direta e obrigando a seguradora a efetuar o pagamento diretamente a elas (não se fala em reembolso, mas, sim, pagamento direto), porém, permitem à seguradora a oposição, em relação aos terceiros, das defesas que têm em relação ao segurado, desde que anteriores à ocorrência do sinistro.

O projeto de lei de seguros do Brasil [5] admite a ação direta da vítima, desde que em litisconsórcio passivo com o segurado [6]. Destaca, ainda, o duplo interesse no seguro de responsabilidade civil, prevendo, em seu artigo 102, que: “O seguro de responsabilidade civil garante o interesse do segurado contra os efeitos da imputação de responsabilidade e do seu reconhecimento, e dos terceiros prejudicados à indenização”.

No que tange à oponibilidade aos terceiros das defesas que a seguradora tem em relação ao segurado, o projeto segue a linha das leis francesa e canadense, ou seja, permite a oposição das defesas, fundadas no contrato, anteriores ao sinistro *[7].

Gustavo de Medeiros Melo *[8] afirma que “o sistema jurídico moderno se preocupa não só com os interesses do segurado, mas também com as consequências que um acidente pode causar na vida das pessoas que não fazem parte da relação contratual firmada entre segurado e segurador: são os terceiros a que se refere o art. 787 do Código Civil”.

E conclui: “trata-se de uma garantia de duplo interesse”.

Já Walter Polido *[9] discorda do duplo interesse e afirma que, “de forma privada e facultativa, o seguro RC é contratado em benefício sempre do próprio segurado e não do terceiro, que busca garantir-se da indenidade patrimonial”.

Sérgio Cavalieri Filho *[10], na mesma linha, conclui que, “à primeira vista, parece tratar-se de um seguro feito em benefício de terceiro, mas, na realidade, tal não ocorre (...), porquanto, o que o segurado realmente objetiva é não ter que desembolsar a indenização eventualmente devida a terceiros”.

Por sua vez, o Enunciado 544 da VI Jornada de Direito Civil do Conselho Federal de Justiça *[11] abarcou a teoria do duplo interesse ao concluir que: “O seguro de responsabilidade civil facultativo garante dois interesses, o do segurado contra os efeitos patrimoniais da imputação de responsabilidade e o da vítima à indenização, ambos destinatários da garantia, com pretensão própria e independente contra a seguradora”.

Nesta linha interpretativa é que o STJ já havia se posicionado no sentido de que “a seguradora detém legitimidade passiva para, em conjunto com o segurado causador do dano, ser demandada diretamente pela vítima” [12] [13].

O acórdão ora em comento, portanto, seguindo a linha do duplo interesse no seguro de responsabilidade civil e na função social do contrato, entendeu incabível opor ao terceiro a excludente contratual de embriaguez do segurado.

Decisão polêmica e bastante controvertida, ainda será reapreciada pela 2ª Seção do STJ, tendo em vista que, contra ela, foram opostos embargos de divergência.

Por derradeiro, embora não discutido no acórdão (por falta de prequestionamento), mas pertinente ao tema, é importante fomentar o debate acerca do que dispõe o artigo 9º da Lei 6.194/74:

“Nos seguros facultativos de responsabilidade civil dos proprietários de veículos automotores de via terrestre, as indenizações por danos materiais causados a terceiros serão pagas independentemente da responsabilidade que for apurada em ação judicial contra o causador do dano, cabendo à Seguradora o direito de regresso contra o responsável”.

Tal dispositivo, como salienta Ernesto Tzirulnik *[14], é pouco lembrado no meio jurídico e de seguro, mas “manda serem indenizados os danos materiais independentemente da apuração de culpa e remetem as seguradoras à discussão com os segurados causadores do acidente, provendo efetiva proteção para as vítimas”.

Gustavo de Medeiros Melo *[15], ao referir-se a esse dispositivo legal, esclarece que, no seguro facultativo de responsabilidade civil dos proprietários de veículos automotores de via terrestre, “a responsabilidade securitária não depende da comprovação de culpa, de sorte que o pagamento da indenização deve ser feito à vítima tão logo concluída a regulação”.

Após o pagamento da vítima, Gustavo esclarece que “não se descarta eventual ação de regresso para ressarcimento junto ao segurado, por conta de alguma falta, cometida por ele, grave o suficiente para isentar a companhia da obrigação de indenizar. Essa é a leitura possível que extraímos desse enunciado não muito claro do art. 9º da Lei 6.194/74” *[16].

Portanto, em que pese a falta de clareza, extrai-se, indubitavelmente, deste dispositivo legal, o escopo de primazia da proteção às vítimas do acidente automobilístico e a função social, ex lege, do seguro de responsabilidade civil dos proprietários de veículos automotores de via terrestre, o que vai ao encontro da tese lançada no acórdão ora comentado.


*[1] Art. 787 – “No seguro de responsabilidade civil, o segurador garante o pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro”.

*[2] “El perjudicado o sus herederos tendrán acción directa contra el asegurador para exigirle el cumplimiento de la obligación de indemnizar, sin perjuicio del derecho del asegurador a repetir contra el asegurado, en el caso de que sea debido a conducta dolosa de éste, el daño o perjuicio causado a tercero. La acción directa es inmune a las excepciones que puedan corresponder al asegurador contra el asegurado. El asegurador puede, no obstante, oponer la culpa exclusiva del perjudicado y las excepciones personales que tenga contra éste. A los efectos del ejercicio de la acción directa, el asegurado estará obligado a manifestar al tercero perjudicado o a sus herederos la existencia del contrato de seguro y su contenido.”.

*[3] Code des Assurances – Article R 124-1 “Les polices d'assurance garantissant des risques de responsabilité civile doivent prévoir qu'en ce qui concerne cette garantie aucune déchéance motivée par un manquement de l'assuré à ses obligations commis postérieurement au sinistre ne sera opposable aux personnes lésées ou à leurs ayants droit. Elles ne doivent contenir aucune clause interdisant à l'assuré de mettre en cause son assureur ni de l'appeler en garantie à l'occasion d'un règlement de sinistre”.

Code des assurances, Article L 124-3 “Le tiers lésé dispose d'un droit d'action directe à l'encontre de l'assureur garantissant la responsabilité civile de la personne responsable. L'assureur ne peut payer à un autre que le tiers lésé tout ou partie de la somme due par lui, tant que ce tiers n'a pas été désintéressé, jusqu'à concurrence de ladite somme, des conséquences pécuniaires du fait dommageable ayant entraîné la responsabilité de l'assuré”.

*[4] Code Civil du Québec – Article 2500. “Le montant de l’assurance est affecté exclusivement au paiement des tiers lésés”.

Code Civil du Québec – Article 2502. “L’assureur peut opposer au tiers lésé les moyens qu’il aurait pu faire valoir contre l’assuré au jour du sinistre, mais il ne peut opposer ceux qui sont relatifs à des faits survenus postérieurement au sinistre; l’assureur dispose, quant à ceux-ci, d’une action récursoire contre l’assuré”.

*[5] Projeto de Lei 29/2017, aprovado pela Câmara dos Deputados e, atualmente, em trâmite no Senado Federal.

*[6] Art. 103 – “Os prejudicados poderão exercer seu direito de ação contra a seguradora, desde que em litisconsórcio passivo com o segurado”.

*[7] Art. 104 do projeto de lei de seguros – “A seguradora, salvo disposição legal em contrário, pode opor aos prejudicados todas as defesas fundadas no contrato que tiver para com o segurado ou terceiro que fizer uso legítimo do bem, desde que anteriores ao início do sinistro”.

*[8] Melo, Gustavo de Medeiros - Ação direta da vítima no seguro de responsabilidade civil, São Paulo, Editora Contacorrente, 2016, pág 60.

*[9] Polido Walter A. Seguro de responsabilidade Civil: manual prático e teórico, Curitiba, Juruá, 2013, pág. 255.

*[10] Cavalieri Filho, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil (Locais do Kindle 13934-13938). Atlas. Edição do Kindle.

*[11] https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/161.

*[12] REsp 943.440/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 12/04/2011, DJe 18/04/2011.

*[13] Súmula 529 do STJ: “No seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora do apontado causador do dano.” – a contrário senso, cabe a ação direta da vítima contra a seguradora do apontado causador do dano, desde que em litisconsórcio com o segurado.

*[14] https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/brumadinho-os-seguros-de-responsabilidade-civil-e-as-vitimas-empurradas-com-a-barriga.

*[15] Ob., cit, pág 137.

*[16] Ob., cit, pág 137, nota 256 de rodapé.